Do início de 2020 para cá, passamos a viver em um mundo estranho, quase surreal. Princípios e valores que julgávamos universais, perenes e solidificados na sociedade, foram relativizados. Viraram pó. Como isso foi possível? O texto a seguir oferece uma visão desse processo.
Os mais vividos hão de se lembrar do célebre festival da canção de 1968, quando foi popularizado o refrão: "É proibido proibir". Pouco tempo antes, em março de 1964, João Goulart abandonou o cargo de presidente da República. Temia ser deposto e aprisionado pelo movimento civil e militar que brecou seu projeto de reformas socialistas. Não foi preciso disparar um único tiro para afugentar do país a camarilha vermelha, pois a Igreja Católica capitaneou passeatas gigantes, enquanto grupos de estudantes universitários, como os da Universidade Mackenzie, saíam no tapa com seus pares comunistas da USP. Editoriais dos grandes jornais saudaram a Revolução de 31 de março, e o projeto totalitário de conquista do poder desabou como um castelo de cartas.
Mas voltemos a 1968, quando os EUA viviam o auge o movimento da Contracultura. Militantes feministas queimavam sutiãs em protesto contra o “machismo”; negros protestavam contra o racismo; hippies fugiam da conscrição para a Guerra do Vietnã e até do banho diário. Bandeiras libertárias foram criadas, como o “amor livre”, o anticapitalismo, o abortismo, o culto à natureza, e a popularização do uso de drogas. O movimento ecoou pelo Ocidente.
Ganhou corpo uma onda de protesto estudantil, organizada e estimulada por professores marxistas, que tomou as ruas da França em maio. Qual foi o estopim? Fome? Baixos salários? Desemprego? Mensalidades escolares caras? Nada disso. Os universitários bradavam contra a divisão dos dormitórios dos estabelecimentos de ensino entre homens e mulheres, pressionando para que o Estado fosse conivente com a promiscuidade nos alojamentos. Foi o suficiente para o início de confrontos com a polícia, quando exibiram faixas de apoio à ditadura de Mao Tsé-tung e aos comunistas do Vietnã do Norte. Também lá a revolta foi um fracasso, pois nas eleições seguintes os políticos vinculados ao presidente Charles de Gaulle (um conservador) conseguiram expressiva vitória nas urnas. Sobraram os slogans da intifada juvenil: "Sejam realistas, exijam o impossível", "Parem o mundo, eu quero descer" e "É proibido proibir". Esse é o momento em que chegamos ao Brasil.
Durante uma das eliminatórias do Festival da Canção de 1968, Caetano Veloso foi vaiado ao cantar com os Mutantes a música “É Proibido Proibir”, composta com versos macaqueados do movimento estudantil francês. Ele interrompeu a apresentação para proferir um virulento discurso contra o governo — ato político num país de imprensa e opinião livres, no qual o AI-5 seria decretado apenas em dezembro, apesar da série de ações terroristas pregressas, como o atentado a bomba em Recife contra o presidente Costa e Silva, em 1966. Resultado: o público rejeitou a militância do artista, virando-se de costas para o palco, e a canção foi desclassificada, o que provocou sua ira:
“Mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder? [...] Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada".
Texto, muito bem escrito.
Pequeno, porém cheio de conteúdo, e com uma visão abrangente do assunto. Impressionante.
Excelente texto. Uma visão clara da realidade que estamos vivendo.